O espelho sempre esteve associado à concepção de narcisismo e de culto da imagem, em especial de egocentrismo. Por outro um lado refere-se à tomada de consciência, à auto-compreensão e conhecimento; assume-se, também, como ficção, o reflexo, o irreal, a inversão e a subversão, adoptando frequentemente como que a passagem para o surreal. Contra o espelho é o lugar de proximidade e rotura com as possíveis associações atribuídas ao espelho: é a proximidade com a auto-representação, o reflexo, e a negação dessa proximidade através da subversão que é atribuída a cada reflexo. O auto-retrato é na hipermodernidade o que melhor assume a valorização do Eu e da sua importância perante a sociedade. O indivíduo não procura a satisfação do outro pelo outro, mas sim, aceder a este através de si próprio. Auto-representação, auto-centrado, auto-satisfação, perspectivando a valorização perante o outro sem, no entanto, se submeter às suas exigências. Contra o espelho é este diálogo onde a imagem e o reflexo não são essenciais, mas assumindo o caminho para aceder ao outro. O espelho não é o objectivo, mas o caminho para compreender os territórios externos a cada artista, reflectindo em especial o mundo que os rodeia através das preocupações e dos territórios de cada um. Aproxima-se talvez da fotografia, do território visível dentro do espaço do ecrã ou do visor da máquina, onde cada realidade é vista por um tipo distinto de objectiva. Neste caso, o território de acção de cada artista é o seu próprio território (Carlos Mensil), a sua própria imagem (Cristina Troufa), ou a sua própria moral (Filipe Cortez). O território pessoal é a matéria de observação do mundo, de outras realidades, de enfoque no outro, optando sempre por utilizar o seu corpo como território de acção e de confrontação com o outro. Carlos Mensil utiliza o espaço, o seu espaço, as ferramentas, as suas ferramentas, os objectos, os seus objectos e apresenta-os como se fossem transferidos de um lugar onde apenas ele intervém, e onde se poderá aceder apenas através das suas obras. Poderia tratar-se de um processo simples de descontextualização, mas observando atentamente percebe-se que o que está em causa é a interpelação, o intervir com o espectador, apesar de nunca ceder à vontade deste. Através de pinturas hiper-realistas apresenta pequenos trechos da sua realidade, um território inacessível, sem nunca contar toda a narrativa, mas apenas parte dela, deixando em aberto a reconstrução de acordo com a identidade do fruidor. Cristina Troufa assume-se como a principal ferramenta de toda a intervenção artística e crítica. O seu corpo, a sua imagem, tal como a execução de todas as suas obras são as matérias de trabalho. As suas pinturas funcionam quase como tatuagens que a artista realiza no corpo e que depois volta a arrancar, para de novo voltar a ser intervencionada. Poderia tratar-se de um simples processo de transformação, como se assumisse uma personagem distinta, mas o seu processo vai para além desta elementar mudança, a história está muito mais enraizada, mais profunda, dentro da pele. Os seus auto-retratos são os retratos de muitas personagens, de muitos actores, de muitos anónimos que a artista absorve, assume, e que posteriormente interpreta na tela, no espaço vazio das costas de uma tela branca. O seu território poderia ser o outro lado do espelho, mas mais do que isso ele assume-se como o cenário que está por detrás da nossa imagem quando olhamos ao espelho. É um espaço real que só vemos quando olhamos para nós, sem nos vermos. Filipe Cortez é talvez o autor mais controverso apresentando-se de modo desinibido, tratando temas poderosos como a morte, a religião, a sociedade civil e optando, também ele, por se assumir como o território de intervenção, principalmente nos últimos trabalhos. O seu corpo na pintura é o corpo da História e da moral, que vai utilizando sem se apresentar como crítico ou envolvido nas temáticas referidas. As suas pinturas são a ambiguidade da representação e da crítica, mas interpretáveis por qualquer um dos espectadores. São retratos de figuras que reconhecemos e que ele absorve, criticando-as, destruindo-as, venerando-as. Provavelmente a veneração não faz parte dos seus objectivos, mas não será improvável que isso possa acontecer porque a dedicação a que se oferece em cada obra representa sempre algum tipo de devoção. É sem dúvida uma reunião forte de artistas, de pensadores e de executantes de excelência, que absorveram a identidade individual hipermoderna onde a satisfação do Eu corresponde ao novo, ao original. O Eu é único e aquilo que tem para dizer poderá ser revelador do que estes artistas têm para nos dizer: não é um acto de narcisismo, mas de satisfação deles e, posteriormente, nossa. Domingos Loureiro